Sala de Exposições Temporárias (Projecto do Canal)
Room of Temporary Exhibitions (Channel Project)




___________________________________________________________________________________________



Uma caixa de ressonância
A ressonance chamber (English version below)


O convite feito ao artista André Sousa, para pensar num projecto para o Museu da Horta, nasceu há cerca de um ano durante a fase de preparação das exposições a realizar nos Açores. Entre os vários pontos de interesse, tornou-se para mim relevante a forma como constrói ligações, tecendo um largo espectro entre imagens e referências provenientes de diferentes universos, bem como o seu interesse específico pelas ilhas dos Açores, que já tinha sido objecto da sua investigação e prática artística.
André Sousa age como se estivesse continuamente a ligar um mapa a outros mapas, e dessa forma fosse construindo um sistema, que se desmultiplica numa geografia referencial, obrigando-nos a rever continuamente referentes e significados. Esta estratégia de hiperligação tem uma forte ressonância nas obras que produz, trazendo à superfície uma ideia de dentro e fora, de descentramento, de ligar ou replicar elementos da paisagem e da vida cultural dos lugares onde trabalha.
O título da instalação, Sala de Exposições Temporárias (Projecto do Canal), parece ambíguo, mas lança alguns dados sobre o seu processo criativo. A instalação ocorre precisamente na sala de exposições temporárias do Museu: não se trata de um mero trocadilho de palavras, mas de uma replicação, pelo uso da linguagem, ou talvez se aproxime de um jogo de espelhos. Por outro lado, a apropriação da designação do lugar revela uma certa ironia sobre o processo e a própria taxonomia dos espaços expositivos. A sala onde se fazem exposições temporárias vai ter uma outra sala temporariamente exposta. A segunda parte do título - (Projecto do Canal) - faz a ponte com a geografia do lugar em que é apresentada: o canal, que estabelece uma relação entre as ilhas do Faial e do Pico. Doutra forma ainda, a palavra canal é comum na linguagem da cultura açoriana transformando-se em matéria para a prática do artista.
Este projecto tem, também, um desdobramento no catálogo da exposição. As páginas seleccionadas, para reproduzir as imagens ligadas ao processo da instalação, não são um projecto gráfico independente dentro da publicação, mas foram, antes, coordenadas entre o artista e a designer. Esta prática, ligada à edição, é corrente no seu trabalho e estende-se ao lançamento de blogs na internet, e à edição de pequenas publicações ou fanzines, entrosadas com espaços de exposição alternativos onde tem assumido a responsabilidade da programação, muitas vezes partilhada com outros artistas e curadores.
Uma construção de cor, semelhante à sala original do Museu, está colocada paralelamente à montanha do Pico. No centro desse painel, erigido como um altar central, está uma pintura do autor, que faz referência à uma pintura, que não é imediatamente visível, e que se encontra por trás do altar da imagem da Nossa Senhora de Fátima, na Igreja Matriz da cidade. A verticalidade da construção é acentuada pelas formas pintadas na face que se opõe à pintura. Há um outro elemento na exposição que estabelece uma relação múltipla entre a paisagem, o local e influências pictóricas que o autor assimila e desenvolve. Trata-se de uma fotografia de uma águia sobre um plano branco, apresentada sobre um painel informativo. Esta fotografia é a imagem de um capot de um carro, sobre o qual está um autocolante com uma águia impressa (na realidade é uma decoração num automóvel de uma ilha próxima), mas que se transmuta na imagem poética do voo de uma ave sob a luz intensa do céu atlântico. O que Sousa propõe é uma interrogação sobre a validade da imagem, entre o reconhecimento do objecto fotografado, a sua proveniência e a alegoria do voo do milhafre. A instalação é uma espécie de cabinet de amateur em que André Sousa inclui objectos encontrados (objets trouvés) e os descontextualiza, deixando uma porta aberta sobre a sua natureza e a sua proveniência. A “Sala” passa a ser um lugar de mediação, na esteira de artistas como Allan Kaprow ou Marcel Duchamp, no sentido em que cada objecto passa a ser um dispositivo linguístico e referencial.
Estamos em presença de uma prática conceptual tendencialmente entrópica que colhe continuamente elementos e os reintegra desvelando uma outra possibilidade de sentido, conduzindo o espectador a uma inicial desorientação em presença da instalação no espaço. Esta sala de exposições temporárias é herdeira do Abstract Cabinet de El Lissitzky, no sentido em que o espectador é condicionado no espaço expositivo, transformado por uma construção/arquitectura, que actua sobre a nossa consciência perceptiva, como se estivéssemos dentro de uma caixa de ressonância. Da mesma forma, as reproduções do catálogo estabelecem ligações com aspectos arquitectónicos locais, remetendo-nos para a memória recente dos movimentos artísticos da modernidade. Mas o desdobramento do seu trabalho pode abrir várias portas em que o universo fantástico e mitológico tem o seu lugar, inscrito no voo da ave de rapina ou numa imagem fotográfica nocturna, transmutação mágica de um chifre de unicórnio a partir de uma escultura, com vidros incrustrados, que se encontra junto à marina da Horta. Esta imagem é demonstrativa do seu instinto etnográfico que lhe permite reconhecer, no trabalho de campo, que ressonâncias estéticas pode um objecto encontrar dentro e fora da sala de exposições temporárias.

João Silvério

Texto publicado no catalogo da expoisção

--
23.04.2008
PASSAGEM
Alberto Carneiro | João Queiróz | Rui Toscano |
Francisco Tropa
(obras da colecção da Fundação Luso Americana)
+ André Sousa (projecto convidado)

Comissario: João Silvério

Biblioteca Pública e Museu da Horta
Horta
Faial - Açores
-x-x-x-x-x-x-x-x-x-
x-x-x-x-x-x-x-x-x-x

Lista de Obras (André Sousa) | André Sousa's list of works

Sala de Exposições Temporárias ( Projecto do Canal)
 
Paisagem Fotografia (Impressão a jactos de tinta, colada s/ alucolite) e Estrutura de madeira.
Fotografia: 110x138cm Estrutura: 145x150x118cm

Sol Óleo s/ tela. 82x52cm
Escultura-parede. Aglomerados e tinta plástica. 220x175x45cm

Gin Tónic Óleo s/ papel. 46x55cm
N (Pintura a indicar Norte) Óleo s/ papel. 40,5x30,5cm
Jogo Óleo s/ papel. 30,5x30,5cm

Trevas Óleo s/ contraplacado de pinho e plinto. 24x24cm + 90x38x31cm
Luz Óleo s/ contraplacado de pinho, acrílico amarelo de farol partido e plinto. 28x28cm + 70x35x45cm
Água Óleo s/ madeira e contraplacado, borracha e plinto. 28x28cm + 50x37x45cm
Paisagem Óleo e grafite s/ placa preparada c/ gesso e plinto. 19,524x23cm + 70x44x38cm
 
Cerca Madeira (Sucupira, mogmo e outras madeiras). 35x392,5x364,5cm


___________________________________________________________________________________________
English:



A resonance chamber


A year ago, while our Azores exhibitions were in their preparation phase, artist André Sousa was invited to conceive a project for the Horta Museum. There were several reasons for this invitation; for me, the two most important were his ability to generate connections, weaving together a broad spectrum of images and references from various universes, and his specific interest in the Azorean isles, which had previously been the object of his artistic research and practice.
André Sousa works as if he were continuously connecting one map to other maps, thus building a system that unfolds itself into a referential geography, forcing us to continuously reassess referents and meanings. This hyper-connective approach resonates strongly in his pieces, bringing to the surface a notion of inside/outside, of decentring, of connecting or replicating elements from the landscape and cultural life of the places in which he works.
The installation’s title, Sala de Exposições Temporárias (Projecto do Canal) [Room of Temporary Exhibitions (Channel Project)], ambiguous though it may seem, gives us some hints about his creative process. The installation takes place precisely in the Museum’s room of temporary exhibitions: this is no mere play on words, but a replication, or perhaps a mirroring, by linguistic means. On the other hand, this appropriation of the place’s denomination reveals a measure of irony regarding the procedures and taxonomy of exhibitive spaces. The room in which temporary exhibitions are held will temporarily host another room. The second part of the title, (Projecto do Canal), creates a connection with the geography of the place in which it is presented by mentioning the channel that connects the islands of Faial and Pico. Additionally, the word canal is widely used in Azorean culture, and thus becomes further material for the artist’s practice.
This project also prolongs itself into the exhibition’s catalogue. Though not an independent graphic project within the book, the pages that feature images from the installation have been previously planned by the artist with the catalogue designer. This publishing practice is usual in Sousa’s work, and includes the launch of weblogs and small printed publications, is association with alternative exhibiting spaces whose programming he has organised, often in collaboration with other artists and curators.
A structure, similar in colour to the original room in the Museum, stands parallel to Pico mountain. At the centre of a panel, which stands as an altar centrepiece, is a painting by the artist, which alludes to a painting that is not immediately visible, being located behind an altar with the image of Our Lady of Fátima at Horta’s mother church. The structure’s verticality is stressed by the forms painted upon the side opposite to the painting. There is another exhibit that creates a multiple relationship between the landscape, the place and the pictorial influences the artist assimilates and develops. It is the photograph of an eagle on a white background, shown on an information panel. This photograph depicts the hood of a car, which sports a sticker on which an eagle is printed (it is actually a decoration on a car from a nearby island), but which becomes the poetic image of a bird flying under the intense light of the Atlantic sky. Here, Sousa is putting into question the validity of the image, which hovers between the identification of the photographed object, its origin and the allegory of the kite’s flight. This installation is a kind of cabinet d’amateur, where André keeps found objects which he then decontextualises, leaving their nature and provenance a mystery. The “Room” becomes a place of mediation, evocative of the work of artists like Allan Kaprow or Marcel Duchamp, in the sense that each object becomes a linguistic, referential device.
We are in the presence of a somewhat entropic conceptual practice, which continuously picks up elements and reintegrates them to reveal new possibilities of meaning, causing the spectator an initial feeling of disorientation on viewing the installation in space. This room of temporary exhibitions is an heir to El Lissitzky’s Abstract Cabinet, in the sense that the spectator is conditioned by the exhibitive space, transformed by a construction/architecture that acts upon our perceptive consciousness as if we were standing inside a resonance chamber. In the same way, the illustrations in the catalogue establish connections with local architectural features, evoking recent memories of modernity’s artistic movements. But the unfolding of Sousa’s work can open several doors leading to a fantastic, mythological universe, visible in the flight of the bird of prey or in a nocturnal photograph that magically creates a unicorn’s horn out of a glass-incrusted sculpture that stands by the Horta Marina. This image is illustrative of his ethnographic instinct, which allows him to assess, during his field work, which aesthetic resonances a given object may generate, both in and out of the room of temporary exhibitions.

João Silvério

Text published in the exhibition's catalogue.
--

23.04.2008
PASSAGEM
Alberto Carneiro | João Queiróz | Rui Toscano | Francisco Tropa

(works from the Luso American Foundation's collection)
+
André Sousa (Comissioned project)

Curator:
João Silvério

Biblioteca Pública e Museu da Horta

Horta
Faial - Açores



Esboço do projecto | Project sketch